sexta-feira, 21 de maio de 2010

Nós e os outros na Música Negra Contemporânea

Nós e os outros na música negra contemporânea

Augusto Bapt
As provocações vividas nos três dias de debate sobre Estética Negra alimentam essas idas e vindas conceituais que definem minha narrativa.
O processo natural do vai e vem que fazemos em nosso dia-a-dia, já nos exige total habilidade para ir e vir, sem esbarrar nas coisas, sem atropelar as pessoas, sem aplicar a ação inadequada e desperdiçar um instante precioso. Enfim, ”pra viver é preciso mestria”, muitos poetas já deixaram isso grafado em nossas mentes, muitos filósofos já problematizaram e esclareceram tal afirmativa e, imensos contingentes de mortais já provaram na carne a profunda importância do sentido oculto nessa máxima.
Acredito que a reflexão sobre as ações que praticamos e as que deixamos de praticar, diariamente, em nosso universo pessoal, é sem dúvidas, um ótimo portal para o nosso crescimento e para a compreensão do que somos e do quanto podemos com nossa estrutura tecnológica mais primitiva: nosso próprio corpo e suas múltiplas funções...
No exercício multidimensional de nossa individualidade nos defrontamos com nossos desafios, nossas limitações e acabamos descobrindo nosso potencial para resolver os problemas, superar os limites e aplicar os incríveis recursos de nossa magnífica engenharia mental, que está sempre disponível para nos socorrer, nos momentos mais difíceis, mesmo quando não nos damos conta do quanto, realmente somos capazes.
Enquanto desenvolvemos nosso processo individual, corremos gravíssimos riscos... Alguns mais freqüentes são: acreditarmos, exageradamente, em nossas próprias crenças e paradigmas, ao ponto de nos fecharmos para o mundo, até causar o bloqueio de portais decisivos para a ampliação do nosso empreendimento. Outro risco é acharmos que o nosso processo é o melhor do mundo e o que estamos fazendo, isoladamente, vai resolver os problemas de coletividades distanciadas das questões que caracterizam e definem nossas práticas individuais. Por isso, penso que todo esforço organizacional de um indivíduo, por mais acertado que seja só tem validade e ganha desdobramentos, quando está focado e em sintonia com as necessidades de sua comunidade imediata ou natural.
Essa reflexão me faz acreditar cada vez mais no encontro, no debate, no confronto de idéias e posicionamentos diversos, que nos provocam e nos convidam a enxergar novas possibilidades e caminhos para construções coletivas.
Ao longo do desfolhar das árvores de nossas vidas, cada folha que cresce, executa sua função no sistema respiratório e ao se desprender do galho, se atira no abismo dramático da ação abstrata, onde corpos concretos não constituem foco de maior interesse. Ali é o lugar, é o espaço das idéias, das formulações inimagináveis, por intervalos insondáveis quase imperceptíveis, carregados de transformações intercelulares e intra-atômicas. É assim que se dá a criação em poesia, em música e em outras linguagens artísticas... da complexidade estrutural da árvore, que representa um coletivo, à simplicidade da queda de uma folha, que significa o fim de um ciclo vital e ao mesmo tempo, simboliza para o universo poético a abertura ou início de um ponto de mutação para outra leitura dos elementos dispostos ao nosso redor, visíveis ou não, palpáveis ou não. No instante em que decodificamos o conteúdo, escolhemos as ferramentas e iniciamos, à nossa maneira um novo ou diferente processo de intervenção sobre alguma natureza abstrata ou concreta, essa intervenção será Estética, se considerarmos o conjunto dos “modos” de perceber, de sentir, de pensar, de fazer, de expor e/ou comunicar o produto ou resultado final do “ato criativo” e ainda os “estados psíquicos” do ator ou grupo de atores.
É enquanto a folha mergulha no vazio de sua queda que linhas ocultas se tornam visíveis e inspiram novos caminhos e formas diante de olhares atentos e sensíveis, ávidos para traduzir seus diálogos silenciosos com micro eventos da natureza. Estou falando nesse texto, única e exclusivamente, de processo criativo, poético, filosófico ou político, de indivíduos ou de coletivos organizados.
Mesmo quando nos inspiramos em acontecimentos gerados no seio das massas, enquanto criamos, somos meros solitários... em nossa solidão tudo é possível.
Ficamos frente a frente com nossas questões mais íntimas, é quando o indivíduo pode, realmente, empoderar-se de si mesmo. Pode escolher as ações, a qualidade das ações e
Pode ainda sugerir o sujeito para praticá-las, ou seja, pode criar o personagem e pode dirigi-lo em inter-relações coletivas. Por essa ótica, a solidão seria o portal perfeito para o indivíduo experimentar todo o seu poder, sem interferência de ninguém...mas, e quem
nunca soube o que é solidão? Nunca ficou, realmente, só? Será que alguém assim, entende o significado da palavra: individualidade?
Após respondermos ou pensarmos sobre as questões colocadas acima, certamente, estaremos mais próximos de compreender o isolamento dos gênios, em seus processos criativos, o enlouquecimento e o total afastamento da realidade, caso de muitos. Estaremos também, “mais prontos para o debate”.
E de que debate estamos falando? Sabemos que a história se desenrola por processos de várias naturezas e que sem eles uma sociedade não sobrevive nem se desenvolve, certo?
Processos de guerras; processos de pacificação; processo de anexação de territórios; processo de aculturação e, como matriz, o mais marcante e perverso de todos os processos experimentados pela humanidade: a colonização. Ao cair com todas as armas e necessidades sobre o outro, o colonizador deseja sugá-lo, tirar toda sua essência, até julgar que esse “outro” não passa de mero “objeto inofensivo”, pronto apenas, para servi-lo, esvaziado, acomodado à espera, como um cordeiro antes do golpe final, de novos códigos de comportamento, nova conduta, “nova alma”,enfim, nova Estética, a do Colonizador.
O debate sobre música negra contemporânea proposto e desenvolvido por afrobrasileiros dentro de seu tempo, para resolver questões de hoje e de amanhã, sem as rédeas de nenhum representante da Casa Grande, torna-se um tesouro de extremo valor para todos nós. Ao iniciar a reflexão sobre Estética e música negra, percebi que seria uma excelente oportunidade para por no papel minhas teorizações sobre o tema proposto: Nós e os outros na música negra contemporânea. Depois de atravessar a década de 1990, pesquisando, debatendo e praticando entradas e saídas nas brechas da Indústria Cultural, vi e vivi muitas experiências de vida e morte precoces, de idéias e projetos artísticos geniais. Na década seguinte continuei minha demanda de pesquisa e militância com a “alma armada” e com a lâmina conceitual afiada, pronta para desferir golpes certeiros e abrir fendas e avenidas para passar meu bloco e minha plataforma de Jongo Contemporâneo, representada pela Banda Caixa Preta, que tem provocado uma ebulição na cidade e um processo irreversível de reconhecimento do Jongo como uma das matrizes formadoras da Música Popular Brasileira. Com a “felicidade guerreira” (Solano Trindade) gritando por todos os poros, vislumbro ainda outra meta paralela, que consiste em aplicar uma dosagem de Jongo Contemporâneo no debate sobre produção de conteúdos pedagógicos, a partir de uma psico-linguagem, lítero-musical da Estética Quilombola.
Por estar no “umbigo do furacão’’, por estar, exatamente, no “centro nervoso” dessa discussão, entendo a questão da Estética Negra como um imenso território invadido e demarcado pela violência colonial . Assim, como reivindicamos reforma agrária para manter o cidadão no campo, com qualidade de vida e evitar o inchaço insuportável das cidades, nós cidadãos e cidadãs herdeiros das senzalas e dos quilombos, reivindicamos mais que terras. Estamos exigindo a expulsão do invasor, queremos nossos imensos territórios de elaboração psicolingüística sob nossos domínios para que possamos administrar do nosso modo nosso capital cultural que continua sendo explorado e gerando riquezas para a sociedade brasileira, às custas do empobrecimento identitário e econômico de nossas fontes culturais. O debate sobre Estética Negra no Brasil contemporâneo, não pode perder-se do “Ser” negro integral, em “condição humana resolvida”, caso contrário, não aprofundaremos o necessário para atuarmos de forma decisiva na “descolonização”, fenômeno contemporâneo que só interessa aos povos colonizados.

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