sábado, 21 de agosto de 2010

Trincheiras Mercadológicas

Trincheiras Mercadológicas.
Augusto Bapt.
Penso não haver melhor lugar para se promover um produto que não em um Mercado.
Na década de 70, fica perceptível, o fenômeno conhecido como “êxodo rural”, resultante do abandono das populações do campo em direção aos grandes centros urbanos. Lembro como se fosse hoje, no ano de 1971, estava em Campos, estado do Rio de janeiro. Ainda muito criança, ouvia as pessoas falando: “Vamo pra cidade! Vamo pro Rio!” Não conseguia entender o que queriam dizer. Só conhecia a periferia da tal cidade que aquelas pessoas desejavam...salvo,uma atividade ou outra,meu bairro de nascimento era muito parecido com o lugar que elas queriam deixar pra trás.
Em Queimados, onde nasci, Baixada fluminense e, especificamente, no meu bairro (Vila Americana) e adjacências, me recordo de duas atividades marcantes que geravam ocupação e alguma renda para os homens da localidade. Uma era a extração (clandestina)de areia dos leitos de rios. Outra era chamada de “corte de grama”, que nada tem a ver com aparar grama de jardins, mas tem a ver com jardins, já explico. Como havia uma quantidade considerável de terrenos inutilizados,sem plantio e nem moradias e em sua maioria, a superfície era coberta por uma espécie de tapete verde...de vez em quando,de quando em vez,quase sempre se viam caminhões e homens cortando “placas de grama”,assim que eles chamavam os pedaços do tapete verde, cortados com extrema técnica,com o auxílio de uma enchadinha de cabo curto...Essa grama era vendida e replantada em jardins de mansões, praças públicas e gramados de condomínios fechados. Para mim e as outras crianças,aquilo não era trabalho,era um evento diferente pro nosso cotidiano.
Crianças, em todas as fases da vida, observam e ser adulto, os adultos querem preservar a condição lúdica e fantasiosa da criança, que o excesso de seriedade já não os permite. Esse embate começa dentro de casa e se estende pra sociedade. Começa quando nascem os filhos e só termina quando morrem os pais. Esse quadro, aparece muito bem representado, em nosso cotidiano, pela forma como se organiza nossa sociedade: um poder oficial a serviço de uma minoria e a maioria com necessidades de organizar o seu próprio poder.
Na sociedade em que fui criança, cresci, me tornei adulto, envelheço e mesmo, tendo lapsos de imortalidade, morrerei. E, morrerá comigo essa dialética absurda, que insiste em construir canais de diálogo entre o Poder oficial e as representações de poderes existentes dentro do seu campo de domínio. Certamente, por ter vivido minha segunda infância em Campos, interior do Estado do Rio de Janeiro,tive o privilégio de conhecer bem de perto um quadro social,econômico e cultural, extremamente, fiel aos tempos remotos de Casa grande e Senzala. Privilégio que vem da experiência de viver algo muito próximo daquilo que viveram meus ancestrais os homo-Senzaliens. Ou seja, aqueles seres humanos,vindos da África, impregnados de milênios e milênios de um processo civilizatório , entre seus iguais, derrepente, quase que por acidente, se deparam com os colonizadores europeus, em condições de desvantagens. São capturados, aprisionados, jogados em porões sombrios dos inesquecíveis Navios Negreiros, também conhecidos como “Tumbeiros”, devido ao grande número de africanos que morriam durante as viagens intercontinentais, por dentro do útero do oceano, lugar misterioso, assustador e mágico...capaz de lhes tragar a vida, a liberdade e a alma, entidades que sempre foram muito respeitadas por todos os Homo Senzaliens. Sobreviventes nos confrontos em terras africanas. Sobreviventes nos porões dos navios. Enfim, sobreviventes de todas as Senzalas que a História lhes reservou, são os únicos organismos humanos em condições químico-biológica de erguer a nova Civilização, essa que chamo Senzalienis.
Dois fenômenos surgidos entre as décadas de 1980 e 1990 - inicio de uma onda de construção de Shopping Centers e o surgimento/crescimento do fenômeno socioeconômico chamado popularmente de “ Camelódromo” – que segundo o olhar que estou lançando, podem ser definidos como “Trincheiras mercadológicas”- se levarmos em consideração que nas trincheiras de guerra os soldados são demonstradores/vendedores de vários produtos, criados e desenvolvidos por cientistas/tecnólogos, aprovados por seus chefes de Estados e sob o comando de seus Generais. As atividades citadas como o corte de grama, de cana e a extração de areia... também se enquadram, já que em todas elas encontram-se grupos entrincheirados e defendendo a sobrevivência pela carência de alternativas. A economia é um cobertor que não cobre ao mesmo tempo os pés e a cabeça.
São essas pessoas do êxodo rural que vão alterar de forma radical e, definitivamente, a paisagem urbana da cidade do Rio de janeiro. Essas pessoas vão ampliar as periferias e formar novas favelas no perímetro urbano, onde vão morar os formadores da classe operária carioca (COC)
Em toda grande cidade, podemos encontrar essa realidade: povoamento rápido, em condições não adequadas, favorecendo o alastramento de construções provisórias, que por falta de recursos e políticas públicas eficientes, se transformam em moradias definitivas. As favelas cariocas são exemplos desse desordenamento arquitetônico.
Nascidos no imediatismo de quem precisa de um abrigo, antes das próximas chuvas ou do próximo inverno, os Barracos se amontoam, por cima, por baixo, do lado, pela frente...escorando e protegendo uns aos outros, gerando uma estética enlouquecida, que Baptizei de arquitetura do desespero. Quando entendemos que esses grupos deslocados estão numa guerra pela sobrevivência e pela melhoria das condições de vida, entendemos também , que cada complexo de barracos é uma trincheira de guerra, onde os soldados são vendedores e vendidos, defendendo seus pontos de venda e revendendo qualquer mercadoria. Confundem-se com suas próprias muambas. Ora são consumidores ora são consumidos. Logo, todo e qualquer aglomerado de compra e venda é uma Trincheira Mercadológica. Feira Livre, Shopping Centers, Camelódromo. Hoje, na cidade do Rio de Janeiro, os grupos que circulam em busca de um business freqüentam, indistintamente, esses mercados. E, de uma forma ou de outra, todos estão entrincheirados, ou estão procurando sua trincheira. Cada um no seu grau de necessidade, lembrará do Shopping ao mesmo tempo em que pensa no mercado popular da Rua Uruguaiana, de Madureira, ou de Campo Grande. Por questões econômicas ou, meramente, afetivas.
INDUSTRIA DA MISERIA...
Por mais que nada seja tão uniforme, unânime e equilibrado, sócio-economicamente, estão todos ali, quase na mesma condição, lutando, diariamente pela defesa de suas vidas, sem perder a dignidade e em muitos casos, humanizando uns aos outros, através do exercício de cidadania e pertencimento do processo de construção de saídas para o desemprego e a exploração selvagem exercida pelos empresários do comércio convencional.
Esse trabalho se resume em um passeio criativo e sério,assim como são as brincadeiras de criança, quando estão defendendo o seu lugar no mundo dos adultos. Não somos crianças, também não somos o poder oficial, logo, somos uma representação do poder do povo em ação interventiva, no interior de uma Trincheira Mercadológica, no centro da cidade do Rio de Janeiro, apresentando o Jongo, como principal código genético do conceito artístico-musical:Jongo Contemporâneo, criado e desenvolvido pelos fundadores/compositores da banda Caixa Preta(Augusto Bapt e Rodrigo Braga)tendo como referência máxima dessa criação, a preferida do primeiro CD, a música “Caxanga Rosa”, que expõe o diálogo desse gênero, com a sociedade, mais precisamente, com a indústria Cultural. Jongo, uma espécie de amálgama tão antiga, resultante das falas, dos gritos, sussurros, gemidos e rezas oprimidas dos nossos ancestrais nos Navios Negreiros, nas Senzalas e nos Quilombos.
Em todos os momentos em que essa música foi apresentada ao público (qualquer público) ficou claro que se tratava de algo diferente nos porões da MPB. Atualmente, no subúrbio do Rio, precisamente, em Bento Ribeiro, acontece uma festa promovida por fãs da Caxanga Rosa. Entendendo o Jongo como uma de nossas estratégias mais antigas de construção dialógica entre o Homo-Senzaliens e o Homo sapiens ( representado pelo Homem da Casa Grande), podemos entendê-lo como linguagem , que se desenvolveu, secreta e misteriosamente, no âmago da psique do homem da Senzala em processo de descolonização e construção inteligente de seu discurso pós-colonial. Esse é o pressuposto mais significativo e relevante para o surgimento do Jongo Contemporâneo, canal decisivo para o fluxo do pensamento senzalience, rumo a um futuro próspero e incontrolável.
Ainda somos oprimidos, por isso estamos entrincheirados, com os nervos corroídos e os ânimos exaltados...
Palmas, rezas, cantos, tambores...
Mitos, ritos, gritos aflitos em ciclos de horrores...
-Calma!Tenha a santa paciência!
Diz o homem, que nunca passou fome nem teve que enterrar nenhum parente, feito um bicho indigente...
-Como eu tive que fazer! Você não sabe, por mim, nunca vai saber...Não me interessa a sua avaliação sobre o meu modo de sofrer, quem sabe da minha dor sou eu... e não quero vendê-la em nenhum mercado, por preço nenhum...meu sofrimento não é mercadoria...e tem mais, se a Paciência fosse santa, já teria feito um milagre pra esse povo parar de esperar tanto.
Ainda somos oprimidos, por isso estamos entrincheirados, cada vez mais excluídos e marginalizados, quando estamos reunidos somos insubordinados...
O trecho acima, atesta o quanto o indivíduo se sente, se torna mais forte e capaz de se manter vivo, quando se conscientiza de seu pertencimento histórico, seja pelas conquistas ou pela dor, provocada pelas perdas. Em outras palavras ressalta a fundamental importância do conhecimento e da informação como mecanismos imbatíveis para resoluções de problemas sociais e para o crescimento humanitário.
Uma questão milenar, continua atual, e devido a força de seu principal fundamento, permanecerá enquanto essa espécie existir. Trata-se de uma pergunta que gera uma brincadeira, quando somos crianças...para adolescentes e adultos estimula um fluxo de viagens intermináveis: advinha o que estou pensando agora? Automaticamente, crianças começam um jogo de advinhação que se transforma em um combustível poderoso para o imaginário livre e para o pensamento cognitivo, desvendar portais insondáveis que podem alcançar outras racionalidades. Como diz o velho ditado:’’Quem pergunta quer saber!’’Acrescento com o maior prazer: Bem-aventurados, todos que observam, analisam e questionam! Só o questionamento pode nos levar à outras formulações e, enquanto houver insatisfeitos no mundo, todo questionamento será sempre bem vindo. Há questões que trago comigo desde os tempos intra-uterinos. É claro que não identifiquei todas e, nem muito menos resolvi, no entanto, uma coisa é certa: essas questões definem minha personalidade, meu caráter, meu senso de realidade e, acima de tudo, minha capacidade de me reinventar e de sonhar o que serei quando amanhecer.
Agora, são três da manhã, ainda quero escrever mais. Sinto que posso pegar os raios de sol, antes que eles toquem a terra... No entanto, dormir é preciso, escrever não é preciso!

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